O PODER SOBRE A DOENÇA
1ª leitura:
(Jó 7,1-4.6-7) A vida, um amontoado de miséria – Jó foi fortemente
provado por Deus. Seus amigos não o conseguem consolar (2,11).
Ensinam-lhe a ver no seu sofrimento o castigo de Deus. Mas, para Jó, o
sofrimento permanece um mistério. Com amargura, considera sua vida, e só
consegue pedir que a aflição não seja forte demais e Deus lhe dê um
pouco de sossego. – O A.T. não tinha resposta para o problema do
sofrimento. A resposta está em Jesus Cristo,
que assume o sofrimento até o fim (evangelho). * 7,1-4 cf. Eclo 40,1-2;
30,17; 40,5; Dt 28,67 * 7,6-7 cf. Sl 39[38],5-6; Is 38,12; Sl
78[77],39; 89[88],48.
2ª leitura:
(1Cor 9,15-19.22-23) “Ai de mim, se eu não evangelizar” – 1Cor 8–10
forma uma unidade em redor da questão se o cristão pode sempre fazer o
que, em si, não seria um mal: p. ex., comer carne dos banquetes
idolátricos (já que o cristão não acredita nos ídolos). Resposta: a
norma é a caridade; se tal comportamento causar a queda do “fraco na fé”
(que ainda não se libertou destas crenças), deve ser evitado.
Argumento: eu também não faço tudo o que teria o direito de fazer: p.
ex., receber gratificação por meu apostolado. Já que tal gratificação
poderia ser mal interpretada, prefiro ganhar meu pão doutro modo. A
gratificação de meu apostolado consiste no prazer de pregar o Evangelho
de graça, pois o que importa é que ele penetre nos corações. * 9,16-17
cf. Jr 20,9; At 9,15-16; 22,14-15 * 9,19, cf. Mt 20,26-27.
Evangelho:
(Mc 1,29-39) Jesus assume o sofrimento de todos – O “dia em Cafarnaum”
(iniciado em 1,21; cf. dom. passado) continua, com gestos que falam de
Deus. A sogra de Pedro é curada de uma febre (coisa perigosa,
antigamente) e transformada numa pessoa que, no seu servir, mostra sua
fé. Ao anoitecer, no fim do sábado, quando o povo começa a se
movimentar, Jesus cura os doentes e exorciza os demônios, que o
reconhecem como o Enviado de Deus. Na manhã seguinte, retira-se para
orar. A partir de seu encontro com Deus, revela, aos discípulos que vêm
buscá-lo, que sua missão o levará a outros lugares, para evangelizar por
palavras e gestos e assim realizar um início do Reino da misericórdia
de Deus. * 1,29-31 cf. Mt 8,14-15; Lc 4,38-39 * 1,32-34 cf. Mt 8,16; Lc
4,40-41 * 1,35-39 cf. Lc 4,42-44; Mt 14,23; Lc 6,12; 9,28; Jo 13,3;
16,27-28.
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A
vida é um “serviço de mercenário”, diz Jó (7,1; 1ª leitura). Como os
bóia-frias, sempre leva a pior. Desperta cansado, e deitado não consegue
descansar por causa das feridas. Que Deus dê um pouco de sossego... O
A.T. não tem resposta para o sofrimento. Os amigos de Jó dizem que os
justos são recompensados e os ímpios, castigados. Mas Jó protesta: ele
não é um ímpio. A teoria da prosperidade dos justos não se verifica na
realidade (21,5-6). Menos ainda convence-o o pedante discurso de Eliú,
tratando de mostrar o caráter pedagógico do sofrimento (cap. 32–37). Os
amigos de Jó não resolvem nada. Vendem conselhos, mas não se compadecem.
Só colocam pimenta nas feridas.
Por
outro lado, mesmo amaldiçoando seu próprio nascimento, Jó não amaldiçoa
Deus, pelo contrário, reconhece e louva sua sabedoria e suas obras na
criação: o abismo de seu sofrimento pessoal não lhe fecha os olhos para a
grandeza de Deus! E é exatamente por este lado que entrará sossego na
sua existência. Pois Deus se revelará a ele, tornar-se-á presente em seu
sofrimento – ao contrário de seus amigos sabichões –, e esta
experiência do mistério de Deus fará Jó entrar em si, no silêncio
(42,1-6).
Também
Jesus, no N.T., nunca apresenta uma explicação teórica do sofrimento.
Neste sentido, concorda com os existencialistas: sofrer pertence mesmo à
“condição humana”. Não há explicação. Mas ele traz uma solução: assume o sofrimento. No livro de Jó, o mistério de Deus se aproxima do homem. Em Jesus Cristo,
como Mc o apresenta, o mistério se revela, gradativamente, sob o véu do
“segredo” do Filho. No início, Jesus assume o sofrimento, curando-o
(evangelho). Isto, porém, é apenas um sinal pois são poucos os que Jesus
curou). No fim, ele assumirá o sofrimento, sofrendo-o. Aí, sua
compaixão se torna realmente universal. Supera de longe o que aparece no
livro de Jó. Se este nos mostra que Deus está presente onde o homem
sofre (e isto já é uma grande consolação para Jó), Jesus nos mostra que
Deus conhece o sofrimento do homem por dentro.
Mas,
por enquanto, ele mostra apenas sinais da aproximação de Deus ao homem
sofredor. Sinais, feitos com a “autoridade” que já comentamos no domingo
passado. Jesus pegando na mão da sogra de Pedro, para fazê-la levantar
de sua febre. Ao fim do dia, depois do repouso sabático, recebe uma
multidão de gente para curá-los: novo sinal de “autoridade”. Inclusive,
exorciza os endemoninhados, e os maus espíritos reconhecem seu
adversário. Mas ele lhes proíbe desvendar seu mistério. Depois,
retira-se, para se encontrar mais intensamente com o Pai; e quando os
discípulos o vêm buscar para reassumir sua atividade em Cafarnaum, ele
revela que a vontade de seu Pai é que vá às outras cidades também. Ele
está inteiramente a serviço dos plenos poderes que o Pai lhe outorgou.
Essa
plena disponibilidade aparece também na 2ª leitura, embora num contexto
bem diferente. Trata-se da pretensa liberdade dos coríntios para
fazerem tudo o que têm direito (p. ex. participar dos banquetes onde se
serve carne sacrificada aos ídolos). Paulo não concorda: existe o
aspecto objetivo (carne é carne e ídolos não existem) e o aspecto subjetivo
(alguém, menos firme ou instruído na fé, pode comer as carnes
idolátricas num espírito de superstição; 8,7). Portanto, diz Paulo, nem
sempre devo fazer uso de meu direito. E coloca-se a si mesmo como
exemplo: em vez de usar de seus direitos sociais, como sejam: levar
consigo uma mulher cristã (9,5), ser dispensado de trabalho manual
(9,6), receber salário pelo trabalho evangélico (9,14; cf. a “palavra do
Senhor” a este respeito, Mt 10,10 e par.), Paulo anuncia o evangelho de
graça, para que ninguém o suspeite de motivos ambíguos. Ora, essa
atitude não é inspirada apenas por prudência, mas por paixão pelo
evangelho: “Ai de mim, se eu não pregar o evangelho... Qual é meu
salário? Pregar o evangelho gratuitamente, sem usar dos direitos que o
evangelho me confere!” (9,17-18). Se tivermos em nós verdadeiro afeto
pelo nosso irmão fraco na fé, desistiremos com prazer de algumas coisas
que, em si, poderíamos fazer; e a própria gratuidade será a nossa
recompensa, pois “tudo é graça”.
ASSUMINDO O SOFRIMENTO DE TODOS
As leituras de hoje estão interligadas por uma alusão quase imperceptível: enquanto Jó se enche de sofrimento até o anoitecer (1ª leitura), Jesus cura o sofrimento até o anoitecer
(evangelho). O conjunto do evangelho mostra Jesus empenhando-se, sem se
poupar, para curar os enfermos de Cafarnaum. E no dia seguinte, o poder
de Deus, que ele sente agir em si, o impele para outras cidades – sem
se deixar “privatizar” pelo povo de Cafarnaum. A paixão de Jesus é
deixar fluir de si o poder benfazejo de Deus. Ele não pensa em si mesmo,
não se protege, não se poupa. Ele assume, sem limites, o sofrimento do
povo. Ele tem consciência de isso aí é sua missão: “Foi para isso que eu vim”. Ele não pode recusar a Deus esse serviço.
Nosso
povo, muitas vezes, vê nas doenças e no sofrimento um castigo de Deus.
Mas quando o enviado de Deus mesmo se esgota em aliviar as dores do
povo, como essas doenças poderiam ser um castigo de Deus? Não serão
sinal de outra coisa? Há muito sofrimento que não é castigo de quem
sofre. Que é simplesmente condição humana, condição da criatura, porém,
também ocasião para Deus manifestar seu amor ao ser humano. O
evangelista João dirá que a doença é uma oportunidade para Deus manifestar sua glória (Jo 9,3; 11,4).
Por
mais que o homem consiga dominar os problemas de saúde, não consegue
excluir o sofrimento, pois esse tem outra fonte. No mais perfeito dos
mundos – como o descreve um romance dos anos 1930 – no mundo sem
doenças, os humanos sofrem pelo desamor, pela mútua manipulação, pela
desconfiança, pela insignificância, pelo mal que o ser humano causa ao
seu semelhante. Por isso, o relato bíblico do pecado atribui o
sofrimento fundamentalmente ao pecado; porém, não ao pecado individual –
o livro de Jó contesta com força tal atribuição (e também Jo 9,3, cf.
acima) – mas ao pecado instalado na humanidade, o pecado das origens (Gn
3,15-19).
Que
Jesus apaixonadamente se entrega à cura de todos os males, inclusive em
outras cidades, é uma manifestação do Espírito de Deus, que está sobre
Jesus, e que renova o mundo (cf. Sl 104[103],30). O evangelista Mateus
(Mt 8,17) compreendeu isso muito bem, quando acrescentou ao texto de Mc 1,34 a
citação de Is 53,4 (do Servo Sofredor): “Ele assumiu nossas dores e
carregou nossas enfermidades”). Ora, se é pelo pecado do mundo que as
dores se transformam num mal que oprime a alma, logo mais Jesus terá de
se revelar como aquele que perdoa o pecado.
Também se hoje acontecem curas e outros sinais do amor apaixonado de Deus que se manifesta em Jesus Cristo, é preciso que reconheçamos nisso os sinais do Reino que Jesus vem trazer presente.
(Pe.
Johan Konings SJ – Teólogo, doutor em exegese bíblica, Professor da
FAJE. Autor do livro "Liturgia Dominical", Vozes, Petrópolis, 2003.
Entre outras obras, coordenou a tradução da "Bíblia Ecumênica" – TEB
e a tradução da "Bíblia Sagrada" – CNBB. É Colunista do Dom Total).