A RESTAURAÇÃO DA HUMANIDADE EM CRISTO E O BATISMO
1ª leitura:
(Gn 9,8-15) Dilúvio e aliança com a humanidade – O dilúvio é o símbolo
do juízo de Deus sobre este mundo. Mas repousa sobre este também sua
misericórdia, simbolizada pelo arco-íris. Deus faz uma aliança com Noé e
sua descendência, isto é, a humanidade inteira. Apesar do mal, Deus não
voltará a destruir a humanidade. É significativo que esta mensagem foi
codificada no tempo do declínio do reino de Judá! A fidelidade de Deus
dura para sempre. * 9,8-11 cf. Gn 6,18; Os 2,20; Is 11,5-9; 54,9-10;
Eclo 44, 18[17b-18]; Rm 11,29 * 9,12-15 cf. Ez 1,28; Ap 4,3.
2ª leitura:
(1Pd 3,18-22) Dilúvio e batismo – 1Pd caracteriza-se por seu teor de
catequese batismal. O batismo inclui a transmissão de credo. 1Pd
3,18–4,6 contém os elementos do primitivo credo: Cristo morreu e desceu
aos infernos (3,18-19), ressuscitou (3,18.21), foi exaltado ao lado de
Deus (3,22), julgará vivos e mortos (4,5). Tendo ele trilhado nosso
caminho até a morte, nós podemos seguir seu caminho à vida (3,18). O
batismo, antítipo do dilúvio, purifica a consciência e nos orienta para
onde Cristo no precedeu. *
3,18 cf. Rm 5,6; 6,9-11; Is 53,11; Rm 1,3-4 * 3,20 cf. Gn 6,8–7,7; 2Pd
2,5–3,21 cf. Rm 6,4; Cl 2,12-13 * 3,22 cf. Ef 1,20-21; Cl 1,16-18.
Evangelho:
(Mc 1,12-15) Tentação de Jesus no deserto e começo de sua pregação – O
batismo de Jesus, sua “provação” no deserto e o fim do ministério do
Batista significam o fim da preparação de Jesus. Aproxima-se a grande
virada do tempo: Jesus anuncia a boa-nova do Reino de Deus. – A tentação
no deserto transforma-se em situação paradisíaca: Jesus é o novo Adão,
vencedor da serpente. Seu chamado à conversão é um chamado à fé e à
confiança. * 1,12-13 cf. Mt 4,1-11; Lc 4,1-13; Is 11,6-9; Sl 91]90],11-13 * 1,14-15 cf. Mt 4,12-17; Lc 4,14-15; Gl 4,4; Rm 3,25-26.
***
O
mal tem muitas faces e, além disso, uma coerência interior que faz
pensar numa figura pessoal, embora não identificável no mundo material.
Chama-se “satanás”, o adversário; ou “diabo”, destruidor. Está presente
desde o início da humanidade. As águas do dilúvio representavam, para os
antigos, um desencadeamento das forças do mal. Mas quem tem a última
palavra, na criação, é o amor de Deus. Deus não quer destruir o homem,
ele impõe limites ao dilúvio e não mais voltará a destruir a terra (1ª
leitura). No fim do dilúvio, Deus repete o dia da criação, em que ele
venceu o caos originário, separou as águas de cima e de baixo e deu um
lugar ao homem para morar. Faz uma nova criação, melhor que a anterior,
pois acompanhada de um pacto de proteção. O arco-íris, que no fim do
temporal nos alegra espontaneamente, é o sinal natural desta aliança.
Oito pessoas foram preservadas, na arca de Noé. Elas serão, graças à
aliança, o início de uma nova humanidade.
Deus
oferece novas chances. Incansavelmente deseja que o ser humano viva,
mesmo sendo pecador (cf. Ez 18,23). Sua oferta tem pleno sucesso com
Jesus de Nazaré. Este é verdadeiramente seu Filho (Mc 1,11). Impelido
por seu Espírito, enfrenta no deserto as forças do mal – Satã e os
animais selvagens –, mas vence, e os anjos do Altíssimo o servem
(evangelho). Vitória escondida, como convém na 1ª parte de Mc. Nos seus
40 dias de deserto, Jesus resume a caminhada do povo de Israel e
antecipa também seu próprio caminho de Servo de Javé. Por sua fidelidade
na tentação, alcança um novo paraíso. Nas próximas semanas, o
acompanharemos em sua subida a Jerusalém, obediente ao Pai. Será a
verdadeira prova, na doação até a morte, morte de cruz. E “por isso,
Deus o exaltou”... (cf. Fl 2,9).
Jesus,
porém, não vai sozinho. Leva-nos consigo. Ele é como a arca que salvou
Noé e os seus através das águas do dilúvio. Com ele somos imersos no
batismo e saímos dele renovados, numa nova e eterna Aliança. Ao fim da
Quaresma, serão batizados os novos candidatos à fé. A imagem da arca,
apresentada pela 2ª leitura, está num contexto que menciona os
principais pontos do credo: a morte de Cristo e sua descida aos ínferos
(para estender a força salvadora até os justos do passado); sua
ressurreição e exaltação (onde ele permanece como Senhor da História
futura, até o fim). Batismo é transmissão da fé.
Portanto,
a liturgia de hoje é como o início de uma grande catequese batismal, e
isso mesmo é o sentido da Quaresma: prepararmo-nos para o batismo, que é
a participação na reconciliação que o sacrifício de Cristo por nós
operou (cf. Rm 3,21-26; 5,1-11; 6,3; etc.). Mergulhar com ele na
provação que nos purifica. Também os que já foram batizados participam
disso, pois, enquanto não tivermos passado pela última prova, estamos
sujeitos a desistências. Mas, como à humanidade toda, no tempo de Noé,
também a cada um, batizado ou não, Deus dá novas chances: eis o tempo da
conversão. Nisso consiste a expressão de seu íntimo ser, que é, ao
mesmo tempo, bondade e justiça: “Ele reconduz ao bom caminho os
pecadores, aos humildes conduz até o fim, em seu amor” (salmo
responsorial). Por essa razão, todos os batizados renovam, na celebração
da Páscoa, seu compromisso batismal.
Anima
a liturgia de hoje um espírito de confiança. Ora, confiança significa
entrega: corresponder ao amor de Deus por uma vida santa (oração do
dia). Claro, devemos sempre viver em harmonia com Deus, correspondendo a
seu amor, como num novo paraíso. Na instabilidade da vida, porém, as
forças do mal nos surpreendem desprevenidos. Mas a Quaresma é um “tempo
forte”, e neste devemos aplicar a nós mesmos a prova do nosso amor,
esforçando-nos mais intensamente por uma vida santa.
QUARESMA, REGENERAÇÃO
Celebramos
o 1º domingo da Quaresma. Muitos jovens nem sabem o que é a Quaresma.
Nem sequer sabem o que significa o Carnaval, antiga festa do fim do
inverno no hemisfério norte, que, na Cristandade, tornou-se a despedida
da fartura antes de iniciar o jejum da Quaresma...
A Quaresma (do latim quadragesima)
significa um tempo de quarenta dias vivido na proximidade do Senhor, na
entrega a ele. Depois de batizado por João Batista no rio Jordão, Jesus
se retirou no deserto de Judá e jejuou durante quarenta dias,
preparando-se para anunciar o Reino de Deus (evangelho). Vivia no meio
das feras, mas os anjos de Deus cuidavam dele. Preparando-se desse modo,
Jesus assemelha-se a Moisés, que jejuou durante quarenta dias no monte
Horeb (Êx 24,18; 34,28; Dt 9,11 etc.), a Elias, que caminhou quarenta
dias alimentado pelos corvos até chegar a essa montanha (1Rs 19,8). O
povo de Israel peregrinou durante quarenta anos pelo deserto (Dt 2,7),
alimentado pelo Senhor.
Na
Quaresma deixamos para trás as preocupações mundanas e priorizamos as
de Deus. Vivemos numa atitude de volta para Deus, de conversão. Isso não
consiste necessariamente em abster-se de pão, mas sobretudo em repartir
o pão com o faminto e em todas as demais formas de justiça – o
verdadeiro jejum (Is 58,6-8). A Igreja viu, desde seus inícios, nos
quarenta dias de preparação de Jesus uma imagem da preparação dos
candidatos ao batismo. Assim como Jesus depois desses quarenta dias se
entregou à missão recebida de Deus, os catecúmenos eram, depois de
quarenta dias de preparação, incorporados em Cristo pelo batismo, para
participar da vida nova. O batismo era celebrado na noite da Páscoa,
noite da Ressurreição. E toda a comunidade vivia na austeridade material
e na riqueza espiritual, preparando-se para celebrar a Ressurreição.
A
meta da Quaresma é a Páscoa, o batismo, a regeneração para uma vida
nova. Para os que ainda não receberam o batismo – os catecúmenos –, isso
se dá no sacramento do batismo na noite pascal; para os já batizados,
na conversão que sempre é necessária em nossa vida cristã: daí o sentido
da renovação do compromisso batismal e do sacramento da reconciliação
neste período. É nesta perspectiva que compreendemos também a 1ª e a 2ª
leitura, que nos falam da purificação da humanidade pelas águas do
dilúvio e do batismo.